Estava-me nas tintas e nem sequer ligava ao que os outros miúdos lá da escola diziam em ar de escárnio sobre a "treta" que era o Pai Natal.
E quando me apercebi que afinal não havia nenhum habitante da Lapónia a distribuir presentes por avaliação de bom comportamento, confesso, não fiquei chocado ou me senti enganado.
Continuei a não achar piada nenhuma aos putos que "agnósticos do Pai Natal" porque as memórias que guardava daquela inocente ilusão eram (e são) tão perfeitas e puras que fazem parte do melhor da minha vida.
Valia a pena a ilusão do Natal personificada naquele velhote anafado que se esgueirava pelas chaminés.
A minha família sempre se regeu pelos princípios nobres de sermos pobres, mas honrados. As dificuldades eram as dos comuns portugueses que retornaram do ultramar e tiveram de fazer das tripas coração nos finais dos anos 70, nos anos 80 e até aos 90.
Nada abundava a não ser a felicidade, o carinho, a boa disposição, a educação e os melhor valores e princípios.
Pouco mais havia do que uma tv a preto e branco (com um plástico colocado no ecrã para simular cores). Havia o canal 1 e o canal 2. A abertura e o fecho da emissão com direito a hino nacional e à mira técnica da RTP. Havia a Cornélia, a Gabriela, a Escrava Isaura, o festival da canção, o Bonanza, o 1,2,3 e os jogos sem fronteiras... e havia uma felicidade imensa e difícil de explicar.... mas disso, um dia falarei, de como os jesuítas que o pasteleiro vendia, porta a porta nas tardes de sábado, faziam o fim de semana ser um luxo maravilhoso.
Havia as idas à aldeia, de comboio (Santo Tirso - Lousado, para mudar de linha; Trofa - Campanhã; Campanhã - Pampilhosa e depois Pampilhosa-Mortágua... Uma odisseia que ainda tinha direito a viagem de autocarro de Mortágua até à aldeia, por entre aquelas curvas que já havia decorado, pintadas de mimosas e pinheiros.
Havia a festa da aldeia em Agosto, a Páscoa.... mas o Natal.... Ah o Natal. Esse era o momento da minha curta e simples vida.
Em Santo Tirso, a avó Laura e o avô Zé enchiam-me de mimos, já com ciúmes dos avós na Felgueira, não fossem eles darem-me mais beijos e abraços do que eles.
Na aldeia, o Natal era sempre mágico. O frio tinha sabor a lenha da lareira, tinha sabor a café de saco feito pela manhã, misturado com o leite. Tinha cheiro a broa acabada de cozer, barrada em manteiga.
O natal tinha a música dos ventos nos pinheiros, tinha um brilho especial naquelas luzinhas da arvore de Natal acabada de ser arrancada à terra ali ao lado.
O Natal cheirava a "bolo de cornos" fresco, a aletria e a sonhos com mel e canela.
O Natal sabia a batatas com bacalhau, ovo e couves.... inundados naquele azeite puro e caseiro onde depois mergulhava a broa até a deixar a pingar.
"Pareces uma coruja a beber azeite", dizia a avó Maria a sorrir.
A ceia de Natal, para mim, sempre foi o momento mais importante do ano. Se há magia num dos 365 dias do ano é naquelas 24 horas do 24 ao 25 de Dezembro.
O cheiro, o sabor, os sorrisos, os abraços, os bolos, as guloseimas.... tudo parece mais doce e perfeito.
O pior era dormir. Conseguir fazer abrandar o ritmo cardíaco que teimava em acelerar à espera da manhã de 25 para saber o que o Pai Natal deixara na arvore.
Não importava se eram meias, se eram um simples carro de plástico ou um saco de rebuçados. Nunca me preocupei porque nunca recebi carros telecomandados, bicicletas ou coisas caras e fantásticas....
Para mim, o mágico era o acordar de manhã a correr e desembrulhar aquele papel e aqueles laços e... naqueles 2, 3 minutos, me sentir a pessoa mais feliz no universo.
O Natal era o meu paraíso, o meu auge de vida, a razão de andar um ano inteiro à espera por aquela noite, por aqueles cheiros e sabores.
Na minha inocência, não sabia o esforço que os meus pais faziam para eu ter aquele carro de plástico ou aquele brinquedo barato ou aquele estojo de canetas de cor. A minha felicidade era tanta que nem eu queria saber se era simples ou se tinha sido caro.... um saco de caramelos chegava.
Mas os meus pais, tantas vezes tiraram da boca deles para dar aos filhos.... e mesmo com um esforço sobre-humano davam tudo o que tinham para fazer aquele miúdo (e ao meu irmão) feliz.
Nos dias de hoje, com estas tecnologias de ponta, com tudo "smart", ou smartphone, as smart tv.... faz com a infância seja também "smart"... a geração smart. Por isso acreditar no Pai Natal é para miúdos ainda sem o chip smart activado pelos pais que talvez sentem o mesmo que eu sentia...
Os miúdos já vêm avisados no seu ADN de que Pai Natal não passa de uma publicidade da Coca-Cola e que cal aos pais darem aquela prenda última geração. Já não se escrevem cartas para o Pai Natal...
Agora faz-se a arvore de Natal com pompa, enche-se a casa de luzes (que perduram até fevereiro na preguiça de arrumar tudo de novo nas caixas) e a ceia de Natal é... o que for e os miúdos gostarem.
Para mim... continua a saber a bacalhau afogado em azeite caseiro, continua a saber a abraço caloroso e a cheirar a lenha e a frio. As luzes nas ruas continuam a ser mágicas (por mim aprovava um decreto que as deixava ligadas o ano todo).
O Pai Natal.... não sei que idade terá.... mas existe.... eu sei que existe. Afinal eu vi-o em carne e osso, quando fui a Rovaniemi, na Lapónia, nos meados dos anos 90, já eu pré-adulto. Eu falei com ele... por isso não me venham com tretas agnósticas. O Pai Natal existe. Já não dá prendas por bom comportamento porque se calhar já não tem idade para andar a distribuir tantos presentes por homens de meia idade.... mas existe. Tal como o Natal existe.... essa noite com sabor a felicidade.
O último Natal passei se a aldeia... sem o Pai Natal de manhã..., mas passei-o com os meus pais... e querem saber de uma coisa? A melhor prenda que tive foi aquele sorriso mágico com sabor a tudo.
Este ano vai ser diferente... Eu sei..., a porcaria da doença, das pandemia, das distâncias do raio da injustiça da vida que nos tira o pouco que temos e que queremos conservar....
Queria ter o abraço e o imo da minha mãe, ainda que distante da realidade e do conhecimento.... queria ter o prazer de dividir o azeite e o alho cortado fininho sobre as batatas e o bacalhau com o meu pai, brindado a um bom vinho... queria ter aquela foto com a legenda: "ESTE É O DIA MAIS FELIZ DAS NOSSAS VIDAS". Queria tê-los... ali... só ali... com árvore, as luzes e o sabor a Natal...
Mas ainda assim acredito que o Natal é o melhor dia do calendário... e que Pai Natal me vai oferecer esse sabor...