sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O calendário dos afectos


 

Nunca temos tempo para nada.

Reclamamos constantemente que os nossos dias deviam ter 48 horas em vez das curtas 24 que o relógio nos oferece.

O tempo é curto para dormir, é curto para o trabalho e raramente se mostra suficiente para afectos ou para nós mesmos.

Somos absorvidos pela azáfama generalizada. Criamos um ritmo frenético em tudo sem nos apercebermos que não é o tempo que é curto... somos nós que o fazemos escasso e minguado porque acumulamos verbos mais do que conseguimos declinar e concretizar.

Nem temos tempo para darmos conta que não é a vida que é ingrata... a ingratidão parte de nós... somos nós que escrevemos e escolhemos a nossa vida.

O nosso calendário dos afectos, quando muito, fica bem definido a duas ou três situações anuais, que nos fazem, por alguns instantes dar algum valor ao que sentimos e ao que realmente importa... amar.

Corremos para ter tempo para o dia de aniversário. Lembramos que amamos no Natal, Páscoa e pouco mais... e mesmo assim enganamo-nos (conscientemente) de que realmente estamos a amar... mas não... estamos apenas a tentar encaixar o verbo amar num tempo reduzido a um presente, a um jantar ou almoço que foi comprado ou programado entre uma correria ou uma agenda sobrecarregado de afazeres.

2020 fez-nos descer um pouco à terra. Fez-nos reservar mais algum tempo para nós e para esse exercício difícil que é pensar e avaliar a  nossa vida.

Este ano, o Natal, a passagem de Ano vão ser tão diferentes... Tudo vai ser tão distante e frio. 

Andamos desgostosos e alarmados porque não teremos os nossos mais queridos juntos nas festas...

Mas já pensamos que há um ano, longe de imaginar que o mundo ficaria virado do avesso por causa de uma "chinesice" qualquer, quando decidimos calendarizar os afectos, talvez não o tenhamos feito a preceito?

Talvez porque não tivemos tempo para dizer, pensar, abraçar, amar, mimar e tantos outros verbos de afecto com o devido "calor" que pretendíamos. 

Hoje, como não temos o (ou os) que queremos, lembramos o (ou os) que perdemos ou desaproveitamos ontem.

Esta mania de calendarizar à pressa e limitar os afectos ao pouco tempo que conseguimos a custo arranjar... resulta depois neste peso na consciência, tão vulgar e humano, do: "se ao menos soubesse que ia ser assim tinha aproveitado mais, tinha amado mais, tinha abraçado, beijado..."

Não é a pandemia que nos rouba ou subtrai os afectos... somos nós.

Para amar, são precisos, pelo menos dois... e amanhã a equação pode estar reduzida a um... e o amor póstumo não nos preenche plenamente a alma.



segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Um sorriso do tamanho do coração




  Por vezes achamos que o sorriso é um simples esgar ou um gesto reflexo dos músculos da cara para preencher uns segundos e dizer em silêncio: “está bem”.

Mas o sorriso é provavelmente o abraço mais caloroso e reconfortante que podemos oferecer. É o espelho mais fiel do nosso coração e dos nossos olhos... é o beijo que não damos mas queremos dar, é toda uma enciclopédia de sentidos.. é um dicionário de amores e carinhos que resumimos naquele momento.

A minha tia Idilia tinha um dom... o dom de amar e de sorrir de uma forma especial. A idade separava-a da minha mãe (sua única irmã) mas o coração mantinha o cordão umbilical tão próximo como se de gémeas perfeitas fossem. Uma tinha, a outra tinha. Uma sentia, a outra também... uma sofria, a outra pressentia.

A vida foi dura com a minha tia e o destino tentou roubar-lhe por tantas e tantas vezes a felicidade e a  razão de viver... e ela sempre respondeu com este sorriso... o sorriso do tamanho do amar em hipérbole.

Perder duas filhas de forma trágica na flor da juventude, perder a mãe ainda nova, perder o irmão ainda novo, perder depois o pai... as doenças que se acumulavam, o retornar de África, o recomeçar... o trabalhar no duro... a tudo isto respondia com um sorriso único é tão belo de coragem e bravura. E tanto lhe doía lá dentro.

Acho que nunca a vi triste durante muito tempo. Tinha esse cuidado. Guardava com  um “egoísmo” carinhoso e caridoso as mágoas só para si para poder oferecer sempre o seu sorriso.

Todos os anos da minha infância e adolescência tinham reservado no calendário uma semana, nas férias grandes, em Coimbra, em casa dela.

Foi por causa dela e dos outros tios de Coimbra (Manel e Fátima) que me apaixonei por Coimbra. A magia que a Solum tinha para mim e os “Patinhas e Donalds” que me comprava na pequena livraria do bairro, nos prédios ao lado. As minhas aventuras na piscina ao lado do estádio do Calhabé.... as idas à baixa com ela e o tio Fabião.

Mais tarde, quando se mudou lá para cima, na ladeira da Santiva... aquela paisagem mágica sobre Coimbra, a “velha cabra” (o relógio da torre da universidade)a fazer-se ouvir lá na colina.

Era tudo tão perfeito quanto o seu sorriso fazia parecer.

Os seus beijos, os abraços, os mimos, os carinhos e aquele jeito tão mágico de ser. 

A serenidade do seu rosto só comparável ao da minha mãe e da minha avó Maria (a mãe delas) fazia-me sentir numa espécie de paraíso perfeito demais para um miúdo de 9, 10 ou 11 anos.

A vida foi-lhe dura... tão dura... mas ela sempre respondeu da mesma forma... não levantava a voz, não perdia a postura... não mostrava as lágrimas... apenas sorria. 

Sorria com um coração tão grande, capaz de abraçar o mundo inteiro no regaço quente e reconfortante de quem nasceu para amar todo o universo.

Eu não sei se vocês acreditam no céu, em Deus ou noutra coisa qualquer. Mas eu tenho a certeza que, se houver alguma coisa de bom para lá desta vida, a Tia Idilia está lá de certeza, agora ao lado do tio Fabião, a sorrir e pronta para amar o mundo.

Já não tenho os dias da Solum, nem o fim de tarde na varanda  na ladeira da Santiva... tenho o sorriso e o conforto que sinto cada vez que percorro aquela cidade e sempre que fecho os olhos e repito: “Amo-te tanto tia. Obrigado por me teres feito crescer assim e ensinado que o sorriso é sempre a perfeita  conjugação  do verbo amar.”

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O PAI NATAL EXISTE




Acreditar no Pai Natal até aos 9 anos de idade é obra. Eu acreditava piamente no homem das barbas grandes, vestido de vermelho e nos presentes (que eram apenas abertos na manhã, bem cedo, do dia 25) na arvore de Natal.

Estava-me nas tintas e nem sequer ligava ao que os outros miúdos lá da escola diziam em ar de escárnio sobre a "treta" que era o Pai Natal.

E quando me apercebi que afinal não havia nenhum habitante da Lapónia a distribuir presentes por avaliação de bom comportamento, confesso, não fiquei chocado ou me senti enganado.

Continuei a não achar piada nenhuma aos putos que "agnósticos do Pai Natal" porque as memórias que guardava daquela inocente ilusão eram (e são) tão perfeitas e puras que fazem parte do melhor da minha vida.

Valia a pena a ilusão do Natal personificada naquele velhote anafado que se esgueirava pelas chaminés.

 

A minha família sempre se regeu pelos princípios nobres de sermos pobres, mas honrados. As dificuldades eram as dos comuns portugueses que retornaram do ultramar e tiveram de fazer das tripas coração nos finais dos anos 70, nos anos 80 e até aos 90.

Nada abundava a não ser a felicidade, o carinho, a boa disposição, a educação e os melhor valores e princípios.

Pouco mais havia do que uma tv a preto e branco (com um plástico colocado no ecrã para simular cores). Havia o canal 1 e o canal 2. A abertura e o fecho da emissão com direito a hino nacional e à mira técnica da RTP. Havia a Cornélia, a Gabriela, a Escrava Isaura, o festival da canção, o Bonanza, o 1,2,3 e os jogos sem fronteiras... e havia uma felicidade imensa e difícil de explicar.... mas disso, um dia falarei, de como os jesuítas que o pasteleiro vendia, porta a porta nas tardes de sábado, faziam o fim de semana ser um luxo maravilhoso.

Havia as idas à aldeia, de comboio (Santo Tirso - Lousado, para mudar de linha; Trofa - Campanhã; Campanhã - Pampilhosa e depois Pampilhosa-Mortágua... Uma odisseia que ainda tinha direito a viagem de autocarro de Mortágua até à aldeia, por entre aquelas curvas que já havia decorado, pintadas de mimosas e pinheiros.

Havia a festa da aldeia em Agosto, a Páscoa.... mas o Natal.... Ah o Natal. Esse era o momento da minha curta e simples vida.

Em Santo Tirso, a avó Laura e o avô Zé enchiam-me de mimos, já com ciúmes dos avós na Felgueira, não fossem eles darem-me mais beijos e abraços do que eles.

Na aldeia, o Natal era sempre mágico. O frio tinha sabor a lenha da lareira, tinha sabor a café de saco feito pela manhã, misturado com o leite. Tinha cheiro a broa acabada de cozer, barrada em manteiga.

O natal tinha a música dos ventos nos pinheiros, tinha um brilho especial naquelas luzinhas da arvore de Natal acabada de ser arrancada à terra ali ao lado.

O Natal cheirava a "bolo de cornos" fresco, a aletria e a sonhos com mel e canela.

O Natal sabia a batatas com bacalhau, ovo e couves.... inundados naquele azeite puro e caseiro onde depois mergulhava a broa até a deixar a pingar.

"Pareces uma coruja a beber azeite", dizia a avó Maria a sorrir.

A ceia de Natal, para mim, sempre foi o momento mais importante do ano. Se há magia num dos 365 dias do ano é naquelas 24 horas do 24 ao 25 de Dezembro.

O cheiro, o sabor, os sorrisos, os abraços, os bolos, as guloseimas.... tudo parece mais doce e perfeito.

O pior era dormir. Conseguir fazer abrandar o ritmo cardíaco que teimava em acelerar à espera da manhã de 25 para saber o que o Pai Natal deixara na arvore.

Não importava se eram meias, se eram um simples carro de plástico ou um saco de rebuçados. Nunca me preocupei porque nunca recebi carros telecomandados, bicicletas ou coisas caras e fantásticas....

Para mim, o mágico era o acordar de manhã a correr e desembrulhar aquele papel e aqueles laços e... naqueles 2, 3 minutos, me sentir a pessoa mais feliz no universo.

O Natal era o meu paraíso, o meu auge de vida, a razão de andar um ano inteiro à espera por aquela noite, por aqueles cheiros e sabores.

Na minha inocência, não sabia o esforço que os meus pais faziam para eu ter aquele carro de plástico ou aquele brinquedo barato ou aquele estojo de canetas de cor. A minha felicidade era tanta que nem eu queria saber se era simples ou se tinha sido caro.... um saco de caramelos chegava.

Mas os meus pais, tantas vezes tiraram da boca deles para dar aos filhos.... e mesmo com um esforço sobre-humano davam tudo o que tinham para fazer aquele miúdo (e ao meu irmão) feliz.

 

 

Nos dias de hoje, com estas tecnologias de ponta, com tudo "smart", ou smartphone, as smart tv.... faz com a infância seja também "smart"... a geração smart. Por isso acreditar no Pai Natal é para miúdos ainda sem o chip smart activado pelos pais que talvez sentem o mesmo que eu sentia... 

Os miúdos já vêm avisados no seu ADN de que Pai Natal não passa de uma publicidade da Coca-Cola e que cal aos pais darem aquela prenda última geração. Já não se escrevem cartas para o Pai Natal...

Agora faz-se a arvore de Natal com pompa, enche-se a casa de luzes (que perduram até fevereiro na preguiça de arrumar tudo de novo nas caixas) e a ceia de Natal é... o que for e os miúdos gostarem.

 

Para mim... continua a saber a bacalhau afogado em azeite caseiro, continua a saber a abraço caloroso e a cheirar a lenha e a frio. As luzes nas ruas continuam a ser mágicas (por mim aprovava um decreto que as deixava ligadas o ano todo).

O Pai Natal.... não sei que idade terá.... mas existe.... eu sei que existe. Afinal eu vi-o em carne e osso, quando fui a Rovaniemi, na Lapónia, nos meados dos anos 90, já eu pré-adulto. Eu falei com ele... por isso não me venham com tretas agnósticas. O Pai Natal existe. Já não dá prendas por bom comportamento porque se calhar já não tem idade para andar a distribuir tantos presentes por homens de meia idade.... mas existe. Tal como o Natal existe.... essa noite com sabor a felicidade.

 

O último Natal passei se a aldeia... sem o Pai Natal de manhã..., mas passei-o com os meus pais... e querem saber de uma coisa? A melhor prenda que tive foi aquele sorriso mágico com sabor a tudo.

Este ano vai ser diferente... Eu sei..., a porcaria da doença, das pandemia, das distâncias do raio da injustiça da vida que nos tira o pouco que temos e que queremos conservar....

Queria ter o abraço e o imo da minha mãe, ainda que distante da realidade e do conhecimento.... queria ter o prazer de dividir o azeite e o alho cortado fininho sobre as batatas e o bacalhau com o meu pai, brindado a um bom vinho... queria ter aquela foto com a legenda: "ESTE É O DIA MAIS FELIZ DAS NOSSAS VIDAS". Queria tê-los... ali... só ali... com árvore, as luzes e o sabor a Natal...

Mas ainda assim acredito que o Natal é o melhor dia do calendário... e que Pai Natal me vai oferecer esse sabor...