terça-feira, 20 de dezembro de 2022

FAZES-ME FALTA










Fazes-me falta

Tanta falta que há em mim

Aquele espaço imenso e profundo

Onde cabiam o teu sorriso e o meu mundo

Onde a história parecia não ter fim.


Fazes-me falta

E agora as silabas ficaram mudas

Há espaços entre verbos e palavras avulso

Há silêncios e revoltas que eu de mim expulso

Há memórias sofridas e dores agudas.


Fazes-me falta

Tanta falta que há em mim

Este sentido perdido sem norte ou sul

Este céu que perdeu o seu manto azul

E se vestiu de um sabor insipido e ruim.


Fazes-me falta... fazes-me falta


























terça-feira, 1 de novembro de 2022


 

"O dia dos Finados"


Sempre fui muito avesso a estas tradições fúnebres, tipicamente latinas e de raízes mais mediterrâneas.

Sempre achei que fazíamos o culto da dor e do luto com um gosto muito duvidoso, masoquista, de auto-flagelação espiritual.

Aliás, é tradição antiga e típica nossa a de ter carpideiras nas cerimónias fúnebres porque quanto mais gente tivesse no velório e mais fossem os choros e gritos de uma dor (mesmo que contratada), mais importante seria o finado para os seus e a sua comunidade.

Os meus avós paternos e a minha avó materna faleceram era eu ainda criança. Foi dolorosa a ausência de eu gostava tanto e por quem eus era mimado.

Tenho recordações esbatidas das cerimónias fúnebres e, como qualquer criança, tentava fugir aos momentos das exéquias. Tive pesadelos com isso nos tempos seguintes.

Já adulto, passei a considerar que o amor e a consideração pelas pessoas é feito enquanto temos a presença e a companhia das pessoas ao nosso lado.

Nos funerais todos são gente boa, deixam saudades e choram todos... tem de ser assim, por respeito.

Eu sempre achei que se deve celebrar a vida. Que o luto nas roupas é masoquismo e impor a nós mesmos uma dor que deveríamos querer deixar de lado.

Vejo-me agora transformado numa carpideira de causa própria e a assumir todos esses comportamentos que sempre reprovei... Estranho retrocesso no meu processo de amadurecimento e humanização... ou será o contrário?

Será que o amadurecimento (vulgo envelhecimento) é isto mesmo? É assumirmos a determinada altura os comportamentos que outrora, na flor da inocência, rejeitávamos e catalogávamos de ridículos?

Se calhar... se calhar é isto envelhecer.

Tenho outra teoria.

Quando se perde alguém que é parte de nós e é a nossa vida ou razão de ser vivenciamos uma dor tão forte que é impossível suportar e armazenar tudo cá dentro nas gavetas da alma.

Se calhar a dor que se sente (eu sinto) é tão imensa que é impossível ficar com tudo cá dentro e não explodir.

Sabem aquele comportamento compulsivo da acumulação que leva alguns a viverem na confusão total?

Se calhar é preciso deitar cá para fora tanta coisa para que não se acumule cá dentro.

Talvez seja por isto que temos necessidade de vestir o corpo da mesma cor que tem a alma e assumirmos o preto nas roupas... e passamos a gostar de nos sentir assim de alma pesada porque já nada faz sentido se assim não for.

Talvez seja este "tsunami" de emoções carregadas de ausência, que não conseguimos quantificar ou classificar, que nos impele a assumirmos como uma personagem dramática, cabisbaixa e cinzenta.

As emoções não são meras peças de roupa que vestimos e mudamos quando queremos. As emoções são uma pele que faz parte de nós.

Vêm os doutos da psicologia com teorias várias: uns dizem que temos de assumir o que sentimos e exteriorizar, sob pena de nos afogarmos na dor e cair no precipício mental. Outros dizem que o remédio passa pela tentativa de abstração da dor, do que nos leva a  e o que nos faz pensar nela.

Não há Freud, Jung ou Klein que tenham o remédio certo para a alma.

Virei carpideira de causa própria. Passei a sentir que o negro combina com a serenidade da alma e até compreendo agora (sem no entanto cair no exagero do comercio emocional que se pratica) o porque desta necessidade de se ter tanta devoção sentimental pelo Dia dos Finados.

O meu dia dos finados são todos os dias e todas as horas porque a dor da ausência não se resume a um dia... é constante. Mas, lá está... as emoções sentem-se.

A dor é tamanha que, até neste dia, se tem de vestir o corpo de emoções e dor para poder arrumar tudo cá dentro, com espaço, sem que o coração viva numa casa desarrumada e num recanto de acumulador de emoções.

Estou a ficar velhote... aos 50 anos... Os mitos são outros num corpo que ainda reivindica ser novo mas que se cansa mais facilmente.

Um corpo mais Finado, num dia de saudades.


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Aniversário


 

Amanhã, 30 de Setembro, seria supostamente um dia marcante (para aquela vulgar contagem a que teimamos dar tanta importância que é os anos de vida). Farei 50 anos.

Muitos dos meus mais próximos, entusiasmados com tal numero redondo, questionam-me se irei fazer festa de arromba e celebrar em grande o meio século... "só se faz 50 anos uma vez".....pois, mas também só se faz uma vez os 49 e os 51....

Celebrar o meu aniversário nunca foi algo que me preenche-se ou pelo qual eu vivesse numa ânsia festiva.

Nunca senti um grande à-vontade perante um coro a cantar-me os parabéns, mas também receber presentes nunca foi algo que me deixe assim tão feliz ou realizado.

Prefiro oferecer... sim, oferecer deixa-me pleno. 

Gosto de ver a surpresa e a emoção na cara dos outros quando posso oferecer ou presentear alguém.

Dos maiores tesouros que guardo em mim são as expressões que o meu filho (agora já com 23 anos) esboçava a cada prenda ou surpresa que lhe fazia ou oferecia, mas isso são outras histórias, para outras linhas.

Nunca dei importância ao meu aniversário e talvez sei o porquê.

Na minha infância vivi momentos felizes mas dos quais tenho poucas memórias, das primeiras festas que os meus pais organizavam.

As vicissitudes da vida levaram a que essas festas, a 30 de Setembro, fossem subtraídas, de alguma forma, do calendário.

A minha mãe teve problemas de saúde, internamentos, e o meu pai (que ficara sozinho comigo) era mais pragmático na vivência do dia a dia. Nunca me faltou nada, mas era diferente.

Além disso, a humildade do nível de vida dos meus pais nunca dava para grandes coisas. Acreditem que eles faziam das tripas coração para dar tudo aos filhos. O que eles passaram, meu Deus, para que aos os filhos nada faltasse.

Aos 10 anos, por opção minha, a incursão em colégios para seguir os meus estudos e vocação afastaram-me do seio familiar, logo (e porque 30 de setembro está em pleno ano escolar), nunca havia lugar a festas e bolo de aniversário, prendas ou afectos mais próximos.

Isto moldou a minha forma de vivênciar o meu dia de anos. Passou a ser um dia igual aos outros.

Há, no entanto, uma coisa que sempre me fez sentir feliz ao ponto de o desejar de forma especial naquele dia: um telefonema ou uma carta de minha mãe.

Até há uns anos (antes da minha mãe começar a acusar o peso dos anos e da doença com esquecimentos), eu emocionava-me, chorava até, com o telefonema, ou a carta, no tempo delas, da minha mãe para me dizer tão só: "Feliz aniversário filho. Espero que seja mais um ano de felicidade", ao que eu respondia: "Feliz aniversário mãe, porque há uns anos atrás se eu nasci alguém teve se ser mãe outra vez".

Não imaginam o quanto isto significava para mim. Sempre valeu mais do que o melhor presente do mundo. Era tudo, era a razão de eu viver aquele dia.

Nos idos anos 80, imaginava a minha mãe, tantas vezes ao frio outonal, a correr para a casa da sua madrinha, lá no fundo da aldeia, onde estava instalado o único telefone do povoado, para me ligar e mandar chamar ao pbx, para me dizer aquela declaração de amor. Ou o cuidado que ela tinha em escrever uma carta, a contar os dias para que chegasse no dia 30, com uma nota de 50 ou até 100 escudos lá dentro como prenda.

Até meados dos anos 90 não havia telemóveis, a internet era uma modernice inacessível a quase todos... mas lá ela ligava para casa ao fim do dia para me deixar ser a pessoa mais feliz do mundo.

Depois, vinha a meia noite e o dia 30 de setembro passava a ser um dia no calendário recente que ser foi.

Vinte e um dia depois, em Outubro,  era a minha vês de lhe ligar e dizer o quanto a amava pelo seu aniversário.

Quanto ela gostava disso.

Este ano, o dia 30 de setembro reserva-me os 50 anos. Numero redondo e bonito... mas não terei a minha prenda. Não terei a minha carta e o meu telefonema. Não ouvirei do outro lado a voz que me embala. 

O Kito de sua mamã não terá direito àquela corrida ao telefone publico, único na aldeia, para ouvir a sua voz dizer: "feliz aniversário filho".... serei feliz por ti mãe. Pelas corridas que deste aldeia abaixo, pelas cartas que escreveste, pelo amor que me dedicaste, pelo teu simples olhar ternurento, a enfeitar o sorriso mais perfeito do mundo.

O dia vai passar, o telemóvel vai estar mudo. Vou ligar ao pai. Sim, porque há 50 anos se eu nasci é porque alguém foi pai também.

Ele não liga muito a estas festas, mas recusou-se a celebrar o aniversário dele há uns meses.

Se calhar porque não tinha a sua "velhota" (velhos são os trapos dizias tu em tom repressivo), a morder-lhe a bochecha e a dar-lhe um abraço.

São 50 anos mãe, amanhã... e parece que ainda agora tudo vai começar, mas de uma forma diferente.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O tempo em que o mundo acabou

 





Caro amigo imaginário...
Dizem que escrever faz bem... não sei. Talvez o exercício verbal engane a alma enquanto, entre lagrimas, se revele o que nos doi cá dentro.

Vai ser longo, desculpa.

A acumulação da situação da mãe, com o meu trabalho, pandemia e vida pessoal fizeram-me envelhecer muito em pouco tempo.


2019 - 

A mãe já apresentava alguns sinais de cansaço cerebral e demência.  
Nos últimos meses de 2019 fui com ela às consultas de psiquiatria em Coimbra (saía daqui de madrugada para os ir buscar à Felgueira e estar em Coimbra às 8 da manhã. Ao fim da manhã regressava para vir trabalhar). 
Nas consultas eu perguntava ao psiquiatra o que se passava com ela (esquecia as coisas, escondia coisas, tinha alucinações de bichos na comida, não dormia...) que exames poderia fazer. Ele apenas, repetidamente e de forma irritante, dizia que era normal, que o cérebro estava a ficar assim, mas que não era preciso exames ou medicação própria.
Perguntava se não havia exames ou diagnósticos... O sr. Prof. Dr.  X (não adianta revelar o nome de tão "douta" alma) dos HUC, em Coimbra, dizia que não era necessário. Tão pouco nos preparava ou avisava sobre o que viria no futuro.

Em Dezembro, os pais vieram passar o Natal e passagem de ano a minha casa. 
Quando chegou estava pior: andava sempre com um saco de roupa na mão a dizer que tinha de ir embora, não parava quieta e começava a esquecer os nomes das pessoas ou a repetir as coisas.
Quando lhe dizia que não ia embora e tinha de deixar o saco da roupa ficava amuada, como uma criança e até chorava.

2020-
Fui levá-los à Felgueira no dia 2 de Janeiro de 2020.
15 dias depois voltei lá para levar a mãe novamente a Coimbra ao médico e aconteceu o primeiro choque: a Mãe não me reconheceu e disse que eu me chamava Carlos, depois joão... fiquei sem chão. 
A mãe estava já sem a razão. 
Nesta fase passou a não dormir, sempre a mexer e a esconder as coisas. Via bichos em todo o lado: na comida, na pele, no ar. Fazia feridas no proprio corpo a tirar os pretensos bichos.

Durante o resto de Janeiro e o mês de fevereiro foi piorando diariamente. 
Eu estava a 150 kms e a ir lá muitas vezes. O pai já não dormia (andava sempre atrás dela toda a noite e dia, para ela não se aleijar).

O pai estava à beira do limite e eu a entrar em pânico.
Em Março a mãe atingiu o limite: chorava 24 horas, rasgava a roupa, não parava quieta e não dormia.
O país ia entrar em confinamento numa quarta feira e eu tinha de encontrar uma solução para tirar a mãe de casa. Se não o fizesse, o pai não ia aguentar. Ele estava sempre a chorar de desespero por não conseguir fazer nada por ela e não aguentar a pressão de ver o seu amor de uma vida naquele estado.

Com a ajuda de uma pessoa amiga, na terça feira antes do estado de emergência, consegui encontrar um Lar, em Oliveira de Azemeis (o único sitio onde consegui encontrar uma vaga). 
Visitei as instalações e gostei.
Na quarta, de manhã, deixei a mãe no Lar (eu, o pai e os tios). 
FOI O PIOR DIA DA MINHA VIDA. Tinha-lhe prometido que jamais a deixaria num lar... ela tinha-me pedido para não o fazer... e eu não consegui cumprir. Não tinha outra hipótese. Chorei com o coração rasgado e a alma num sufoco que não consigo descrever. Senti-me a pior pessoa do mundo, um traidor, um péssimo filho. Tive pesadelos com aquilo durante meses e meses. Acordava a chorar e a chamar por ela.

No inicio foi muito dificil. O país estava em confinamento e ninguem podia sair de casa. As visitas a lares e hospitais estavam proibidas.
Ia tendo noticias dela pelo telefone e algumas video-chamadas que faziam do lar.
A mãe encontrou no lar pessoas maravilhosas. Tratadoras e auxiliares de uma humanidade imensa.
A mãe, com o seu jeito dócil e o seu coração imenso, cativou toda a gente e era muito amada por todos... a Arletinha, como era carinhosamente chamada.

Na altura ela ainda me reconhecia nas vídeo chamadas e falava muito em mim, no pai e no zé e quase sobre todos.
Aos poucos, o meu coração amainou e aceitei que ela estava bem, com pessoas que a amavam e a tratavam bem. 

Entretanto, o país começou a ver as restrições da pandemia aliviadas e as visitas começaram a ser possíveis.
Passei a poder estar com ela todas as semanas durante meia hora, depois um pouco mais.
O estado de demência dela era cada vez mais acentuado e profundo.
Fazia meia hora de viagem para estar com ela e ela apenas aguentava uns 10 minutos comigo:
Ou não falava, ou não reagia, ou adormecia.... mas aqueles 10, 11 ou poucos minutos, eram os melhores momentos da minha vida.
Outras vezes estava mais desperta. 

Quando ia ao Lar fazia sempre uma video chamada para o grupo dos tios para eles poderem "estar" com ela e falar com ela. 
De vez em quando ela reconhecia algum deles, chamava-os pelos nomes: " meu Adriano, o meu Agostinho, o eu Manel..."
Outras vezes, cheguei a estar com ela durante uma hora, com a cabeça dela no meu peito, apenas com ela a dormir, sem reagir... apenas a dormir...
O cheiro dela, o rosto, o cabelo, o toque... cada milímetro e cada segundo eram os meus tesouros.


Em 2021 a demência ficou total, deixou de me reconhecer e de conhecer quem estivesse com ela. 
Visitava-a todas as semanas, pelo menos, e estava com ela ali uma hora... apenas a olhar para ela ou a tentar um diálogo que nunca tinha retorno... mostrava-lhe fotos, videos, musicas, cantava, acariciava-a ou apenas ficava a sentir as mãos dela nas minhas mãos...mas valia a pena cada segundo... todo o meu ser estava feliz por estar com ela, mesmo que ela não me reconhecesse.


Em 2022 ela ficou mais fraca. Teve uma infeção respiratória e recuperou, mas estava mais frágil, mais magra, mais curvada.
O olhar vazio e opaco... 
Mas a beleza dela.... aquela beleza imensa estava lá... sempre lá.
Sabes... a minha mãe sempre foi de uma beleza estonteante, por fora e por dentro.

Em Junho voltou a piorar da infeção respiratória e desta vez já não recuperou.

Um dia.... no dia15 de Junho, estou a trabalhar e recebo um telefonema do Lar, depois do hospital a dizer-me para ir lá porque ela estava na reta final......
Não sei como descrever o que senti. O meu mundo parou.

Fui ter com ela... entrei no hospital, nos cuidados intensivos e o médico disse-me para me despedir dela porque o corpo dela já não reagia à medicação e a qualquer momento ia tudo acabar.
Impossível, pensei eu... ela estava ali, serena, a dormir, a receber oxigénio, os sinais vitais estavam estáveis.... não queria acreditar. Era um pesadelo e eu ia acordar e tudo ia acabar bem....
Estive com ela nas últimas horas. 
Vim a casa descansar um pouco e tomar um banho.... Às 3 da manhã, o coração da mãe parou, no dia 16 de junho.
O meu mundo parou às 3 da manhã do dia 16 de junho de 2022.

Desde então o vazio cresce. Choro.... sim choro muito. Choro todos os dias, do nada. Acordo a chorar. Choro no trabalho, ao volante, enquanto estou só, enquanto vejo tv, enquanto leio... enquanto simplesmente respiro.
Porque a memória dela está sempre presente em todo o lado e em todos os momentos... e a dor da ausência só cresce e não se apazigua.

Vivi isto tudo durante a pandemia, os problemas e sobressaltos do meu trabalho (a minha equipa desceu de divisão em 2021, lutamos para subir em 2022).
Tive COVID em 2021 e passei muito mal, muito mesmo. Tive medo...Tive outros problemas de saude devido ao stress e exaustão.... passei por momentos em que não sabia onde me agarrar, cansado... mas bastava ela... bastavam aqueles minutos ao lado dela para tudo fazer sentido.
Ela, mesmo sem me reconhecer, sem me falar... foi sempre o meu porto seguro e a minha força maior.

Durante todo este período vivi uma revolta interior contra o mundo e contra uma Igreja a quem ela dedicou uma vida inteira enquanto catequista, ministra da comunhão e da celebração da palavra.

Sabes, a mãe sempre teve no fazer o bem aos outros como um dos objectivos de vida mais importantes.
Vivi essa revolta de a terem abandonado.
O padre da freguesia nunca me perguntou pela mãe, nunca visitou o pai. Nunca quis saber de nada.

Escrevi dois emails ao então bispo de Coimbra a relatar a minha revolta.
A mãe dedicou a vida dela à Igreja... e a "igreja" abandonou-a quando ela mais precisava de amor.

Da segunda vez o bispo respondeu-me a pedir desculpa. 
No dia seguinte o padre da paróquia ligou-me com as desculpas mais esfarrapadas, a prometer que a ia visitar e visitar o pai... mentiu. Nunca o fez ou teve intenção de o fazer... nunca.
A mãe faleceu... o dito padre fez o funeral e nem as condolências deu a mim, ao pai ou qualquer membro da família.

Foi assim este meu tempo que o mundo que eu conhecia há quase 50 anos acabou.

Desculpa ser tão longo.
Não espero nada de ninguém. Nem ajuda, nem amor, nem conforto.
Até porque nada faz sentido.... o que eu queria não tenho... a minha mãe.... o meu mundo.

Tentarei deixar um legado que a honre e a deixe orgulhosa.
Tentarei ser um pouquinho do verbo Amar que ela sempre foi.

Tentarei fazer o Meu mundo... à imagem do seu sorriso.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022


 

A MÃO QUE ME AFAGA O CABELO

 

 

“Naquela linda manhã, 

Estava a brincar no jardim,

A certa altura a mamã,

Chamou-me e disse-me assim...

Não brinques tão a correr, tropeças sem querer, depois ficas mal...”

 

Durante os anos deixamos de dar valor ás pequenas coisas que, sem saber, nos preenchem e nos moldam a alma, para depois, assaltados pela ausência, as recuperarmos como se o coração e a memória reclame uma resposta ao vazio que encontra dentro de nós.

 

Dizem que o tempo vai tentar levar o timbre da tua voz... não sei se irá conseguir.

De qualquer modo, guardo os inúmeros registos de vídeo que fizemos nos últimos dois anos. 

O tom é já fraco e ténue mas é o teu, inconfundivelmente quente e terno. Tenho pena não ter outros mais antigos.

O mesmo timbre que me embalava no teu regaço, ao compasso do amor de mãe, enquanto a tua mão me afagava o cabelo e o rosto debruçado no teu colo.

A tua voz, o teu cheiro, o teu jeito delicado... 

Desde as tardes de por do sol, nas areias da praia de Luanda, nas traseiras da casa, ou a soleira das escadas da entrada de casa em Santo Tirso, nas tardes de Domingo, enquanto esperávamos pelo pasteleiro que trazia os jesuítas para o lanche, ou as horas solarengas na Felgueira, sentados à entrada da cozinha. A musica era a mesma, o amor era pleno e a cumplicidade deixava-me rendido, menino de sua mãe, certo de que aquele era o meu paraíso e que o mundo se resumia aquele momento.

 

Procurei a tua voz nas ultimas horas enquanto te pegava nas mãos frágeis e já quase ausentes...No meio do choro compulsivo a adivinhar a dor que se aproximava cantei baixinho a mesma musica, agora contigo encostada ao meu ombro e as minhas mãos a devolverem o afago no teu cabelo fino e cinzento.

 

Não encontrei a paz do mesmo paraíso mas senti o teu cheiro, o teu toque e o teu amor.

 

Sabes, nunca te cheguei a contar, mas lia vezes sem conta os textos que escreveste, naquele caderno de capa preta e grossa, que guardavas no guarda-fatos do teu quarto, tentando desabafar a dor que sentiste quando a tua mãe, a avó Maria, partiu.

Ficava sem folego ao tentar perceber como tanto amor cabia dentro de ti e quanto podia doer uma ausência.

Devorei cada verso dos teus poemas, cada linha das tuas prosas. Conseguias descrever a dor, a saudade e o amor de uma forma tão crua mas também tão bela e doce.

Agora sinto eu o mesmo e não consigo encontrar as palavras para o que sinto.

Dizem que a poesia é a arte de encontrar os vocábulos certos para descrever sentimentos... sou fraco poeta porque me faltam todas as palavras para te dizer o que cá vai dentro.

Mas há uma coisa que sinto. Sim, eu tenho a certeza que sinto.

Sempre fui um medricas no escuro independentemente da idade. Sempre preferi a luz e claridade. Mas agora, menino frágil e perdido, não tenho medo do escuro.

Não tenho o teu colo e o teu cheiro... mas sinto a tua mão a afagar.me o cabelo todas as noites no silêncio, enquanto eu, só para mim, canto baixinho: 

“Naquela linda manhã, 

Estava a brincar no jardim,

A certa altura a mamã,

Chamou-me e disse-me assim...

Não brinques tão a correr, tropeças sem querer, depois ficas mal...”

terça-feira, 12 de julho de 2022


 Dizem que o tempo ameniza a dor, a ausência, a revolta... a saudade... Não.

Não só não ameniza como ainda é mais cruel... tenta ensinar-nos à força continuar a viver com essa ausência e essa saudade , tentando apaziguar a revolta pelo pietismo e resignação do “já nada há a fazer senão conformarmo-nos com esta situação infeliz”.
Dirão que apenas um mês é pouco.... Será sempre pouco para tanto que se ama.
Nunca o tempo será capaz de serenar a falta do cheiro, do toque, do sorriso em surdina, do olhar de ternura que encerrava no silêncio todo o verbo AMAR... do abraço e do carinho.
Sabem aquele cheiro do mimo de mãe, do regaço onde se recosta a cabeça em tardes de sol a ouvir histórias ou canções em encantar?
Sabem aquele toque da mão que nos ajeita o cabelo ou nos estica os lençóis ao deitar selando o mundo perfeito com um beijo de boa noite?
Sabem aquele brilho no olhar humedecido de felicidade quando, sem nada dizer, vos segredam que ttemos ali o maior amor do mundo?
O tempo não ajuda a aceitar a ausência e nunca consegue compensar o vazio.
Já passou quase um mês... e não há um segundo em que eu não espere involuntariamente ouvir, a qualquer momento, aquela voz a dizer: “Oh filho...” Oh Marco"
O tempo dar-me-á muitas vezes o “Marco”, o “Kito”, muitos abraços e sorrisos, que por mais ternurentos e saborosos sejam nunca terão o mesmo som, o mesmo sabor e o mesmo calor... aquele calor de minha mãe.
A voz.... a simples voz....a simples tonalidade e cor da voz deixou de se ouvir.... e até isso o tempo teima em fazer desaparecer da memória.
Imaginam a escala musical sem uma nota só? fazer todas as musicas mas faltar sempre aquela nota?....
O tempo tenta que o corpo e a mente se habitue a viver com uma amputação sentimental sem compreender que o cordão umbilical quando se corta no momento da nascença deveria ser o único acto de separação legitimo (mesmo assim doloroso).
A saudade (essa tão exclusiva palavra que embeleza o fado do português) só é bonita no papel e nos poemas.... Esse trágico sentimento de que sofrem os apaixonados poetas e os “amputados” sentimentais só parece mágica para quem a lê...
porque para quem a sente tem um sabor amargo e terrivelmente áspero.
O tempo não sabe quanto doi... o Tempo passa... sim, ele passa... nós ficamos agarradosàs raízes e aos vazios.