Mãe e aquela música... que não me vem à memória.
Tinha dez, talvez onze anos... nos idos 1982 ou 83. As memórias "âncora" daquela altura são muito vagas ainda que subsistam algumas que marcaram para sempre.
Curiosamente algumas ficaram bem vivas de tal forma que ainda sinto o sabor, o odor ou as emoções que me despertavam... e nem consigo estabelecer uma ordem de importância... apenas ficaram, porque sim... por alguma razão supérflua talvez, mas ficaram.
Desde o sabor ácido das "super gorila" de morango ou laranja ou dos truques incríveis das artes marciais dos "Jovens Heróis de Shaolin" que mais tarde preenchiam o imaginário dos meus recreios que não eram passados a romper os sapatos num futebol empoeirado e digno de uma final de mundial.
Mas há uma tarde que me ficou gravada no âmago da alma e me intriga.
Era uma festa do dia da mãe. No colégio que eu frequentava, as mães teriam direito a uma festa a sério: com teatro, músicas e outras artes circenses à medida de um grupo de miúdos babados pelas suas progenitoras.
Eu estava em regime de internato no colégio, por isso via os meus pais nas férias, na aldeia. Os outros dias eram dedicados ao estudo e ao remoer das saudades.
Naquela tarde, os meus pais estavam ali, na primeira fila e eu tinha de subir ao palco duas vezes.
A 1ª era para um tocar uma musica, à flauta, com mais dois ou tês colegas...
O 2º momento era para cantar uma música dedicada às mães.
O que me intriga nisto tudo é que, não sabendo o nome nem da peça musical para flauta (apenas sei que era uma musica chinesa qualquer), nem a musica para as mães, fiquei com o raio da musica da flauta aqui na cabeça; nota a nota, tom a tom... compasso a compasso.
"mi, si, si, lá, si, sol, mi, mi, si, si, lá, si
mi, si, si, lá, si, sol, mi, mi, sol, mi, ré, mi"... semínima, colcheia, colcheia, colcheia, semínima.... tudo.
o solfejo, o respirar, as partituras. Se calhar decorei tudo com o receio de ficar de castigo se falhasse ou com o receio de desapontar os meus pais.
Já a música para as mães.... subi ao palco, nervoso, a tremer cada pedacinho do meu 1,50mt franzino. A musica foi cantada "acapella":
"Eu amo tanto minha mãe querida,
e vou amá-la para toda a vida.
Pois a maior riqueza, que uma criança tem
É concretiza essa palavra mãe..."
Pouco mais me lembro dos versos e do tom da música.
Não faço ideia de quem era a música. Nunca consegui descobrir mais nada sobre a música. Já procurei nos confins da literatura e da sapiência infinita do Google... e nada.
Sei que cantei, a tremer, do principio ao fim. sem falhas... e por incrível até foi mais afinado do que poderia imaginar tendo em conta a minha voz fraca e sem qualquer vocação lírica.
Dei por mim mais em pânico por ver a minha mãe a chorar e eu ficar aflito a pensar se ela estava assim porque eu estava a sair-me mal ou seria por emoção.... fiquei com o coração a querer fugir-me do peito.
Queria naquele momento correr eu para o regaço da minha mãe e refugiar-me daquele medo e daquele momento tão estranho...
Sim, sempre fui um menino mimado e de muito regaço de mãe... e sempre gostei do silêncio que ela me oferecia enquanto afagava o meu cabelo. Era o meu paraíso secreto.
Mas o raio da vida, agora ao chegar à meia idade, não me consegue desvendar o porquê desta injustiça tremenda.
Porque me lembro eu tão bem deste "mi, si, si, lá, si" em compasso binário e não consigo recordar toda a música que cantei para a minha mãe naquela tarde, num palco de madeira... sem direito a playback...
A minha mãe agora também já não se lembra... mal se lembra do meu nome.
Mas eu tenho a certeza, que lá no fundo do universo que agora atravessa, ela nunca deixou de ouvir: "eu amo tanto a minha mãe querida e vou amá-la para toda a vida..." mesmo cantado acapella, meio desafinado, em tom de voz fraquinho de miúdo magrinho, pequeno e assustado, sem saber se choravas com mais medo do que eu ou de alegria porque acreditavas em cada palavra que eu naquela tarde fiz minhas... para ti.
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