segunda-feira, 8 de agosto de 2022


 

A MÃO QUE ME AFAGA O CABELO

 

 

“Naquela linda manhã, 

Estava a brincar no jardim,

A certa altura a mamã,

Chamou-me e disse-me assim...

Não brinques tão a correr, tropeças sem querer, depois ficas mal...”

 

Durante os anos deixamos de dar valor ás pequenas coisas que, sem saber, nos preenchem e nos moldam a alma, para depois, assaltados pela ausência, as recuperarmos como se o coração e a memória reclame uma resposta ao vazio que encontra dentro de nós.

 

Dizem que o tempo vai tentar levar o timbre da tua voz... não sei se irá conseguir.

De qualquer modo, guardo os inúmeros registos de vídeo que fizemos nos últimos dois anos. 

O tom é já fraco e ténue mas é o teu, inconfundivelmente quente e terno. Tenho pena não ter outros mais antigos.

O mesmo timbre que me embalava no teu regaço, ao compasso do amor de mãe, enquanto a tua mão me afagava o cabelo e o rosto debruçado no teu colo.

A tua voz, o teu cheiro, o teu jeito delicado... 

Desde as tardes de por do sol, nas areias da praia de Luanda, nas traseiras da casa, ou a soleira das escadas da entrada de casa em Santo Tirso, nas tardes de Domingo, enquanto esperávamos pelo pasteleiro que trazia os jesuítas para o lanche, ou as horas solarengas na Felgueira, sentados à entrada da cozinha. A musica era a mesma, o amor era pleno e a cumplicidade deixava-me rendido, menino de sua mãe, certo de que aquele era o meu paraíso e que o mundo se resumia aquele momento.

 

Procurei a tua voz nas ultimas horas enquanto te pegava nas mãos frágeis e já quase ausentes...No meio do choro compulsivo a adivinhar a dor que se aproximava cantei baixinho a mesma musica, agora contigo encostada ao meu ombro e as minhas mãos a devolverem o afago no teu cabelo fino e cinzento.

 

Não encontrei a paz do mesmo paraíso mas senti o teu cheiro, o teu toque e o teu amor.

 

Sabes, nunca te cheguei a contar, mas lia vezes sem conta os textos que escreveste, naquele caderno de capa preta e grossa, que guardavas no guarda-fatos do teu quarto, tentando desabafar a dor que sentiste quando a tua mãe, a avó Maria, partiu.

Ficava sem folego ao tentar perceber como tanto amor cabia dentro de ti e quanto podia doer uma ausência.

Devorei cada verso dos teus poemas, cada linha das tuas prosas. Conseguias descrever a dor, a saudade e o amor de uma forma tão crua mas também tão bela e doce.

Agora sinto eu o mesmo e não consigo encontrar as palavras para o que sinto.

Dizem que a poesia é a arte de encontrar os vocábulos certos para descrever sentimentos... sou fraco poeta porque me faltam todas as palavras para te dizer o que cá vai dentro.

Mas há uma coisa que sinto. Sim, eu tenho a certeza que sinto.

Sempre fui um medricas no escuro independentemente da idade. Sempre preferi a luz e claridade. Mas agora, menino frágil e perdido, não tenho medo do escuro.

Não tenho o teu colo e o teu cheiro... mas sinto a tua mão a afagar.me o cabelo todas as noites no silêncio, enquanto eu, só para mim, canto baixinho: 

“Naquela linda manhã, 

Estava a brincar no jardim,

A certa altura a mamã,

Chamou-me e disse-me assim...

Não brinques tão a correr, tropeças sem querer, depois ficas mal...”