Caro amigo imaginário...
Dizem que escrever faz bem... não sei. Talvez o exercício verbal engane a alma enquanto, entre lagrimas, se revele o que nos doi cá dentro.
Vai ser longo, desculpa.
A acumulação da situação da mãe, com o meu trabalho, pandemia e vida pessoal fizeram-me envelhecer muito em pouco tempo.
2019 -
A mãe já apresentava alguns sinais de cansaço cerebral e demência.
Nos últimos meses de 2019 fui com ela às consultas de psiquiatria em Coimbra (saía daqui de madrugada para os ir buscar à Felgueira e estar em Coimbra às 8 da manhã. Ao fim da manhã regressava para vir trabalhar).
Nas consultas eu perguntava ao psiquiatra o que se passava com ela (esquecia as coisas, escondia coisas, tinha alucinações de bichos na comida, não dormia...) que exames poderia fazer. Ele apenas, repetidamente e de forma irritante, dizia que era normal, que o cérebro estava a ficar assim, mas que não era preciso exames ou medicação própria.
Perguntava se não havia exames ou diagnósticos... O sr. Prof. Dr. X (não adianta revelar o nome de tão "douta" alma) dos HUC, em Coimbra, dizia que não era necessário. Tão pouco nos preparava ou avisava sobre o que viria no futuro.
Em Dezembro, os pais vieram passar o Natal e passagem de ano a minha casa.
Quando chegou estava pior: andava sempre com um saco de roupa na mão a dizer que tinha de ir embora, não parava quieta e começava a esquecer os nomes das pessoas ou a repetir as coisas.
Quando lhe dizia que não ia embora e tinha de deixar o saco da roupa ficava amuada, como uma criança e até chorava.
2020-
Fui levá-los à Felgueira no dia 2 de Janeiro de 2020.
15 dias depois voltei lá para levar a mãe novamente a Coimbra ao médico e aconteceu o primeiro choque: a Mãe não me reconheceu e disse que eu me chamava Carlos, depois joão... fiquei sem chão.
A mãe estava já sem a razão.
Nesta fase passou a não dormir, sempre a mexer e a esconder as coisas. Via bichos em todo o lado: na comida, na pele, no ar. Fazia feridas no proprio corpo a tirar os pretensos bichos.
Durante o resto de Janeiro e o mês de fevereiro foi piorando diariamente.
Eu estava a 150 kms e a ir lá muitas vezes. O pai já não dormia (andava sempre atrás dela toda a noite e dia, para ela não se aleijar).
O pai estava à beira do limite e eu a entrar em pânico.
Em Março a mãe atingiu o limite: chorava 24 horas, rasgava a roupa, não parava quieta e não dormia.
O país ia entrar em confinamento numa quarta feira e eu tinha de encontrar uma solução para tirar a mãe de casa. Se não o fizesse, o pai não ia aguentar. Ele estava sempre a chorar de desespero por não conseguir fazer nada por ela e não aguentar a pressão de ver o seu amor de uma vida naquele estado.
Com a ajuda de uma pessoa amiga, na terça feira antes do estado de emergência, consegui encontrar um Lar, em Oliveira de Azemeis (o único sitio onde consegui encontrar uma vaga).
Visitei as instalações e gostei.
Na quarta, de manhã, deixei a mãe no Lar (eu, o pai e os tios).
FOI O PIOR DIA DA MINHA VIDA. Tinha-lhe prometido que jamais a deixaria num lar... ela tinha-me pedido para não o fazer... e eu não consegui cumprir. Não tinha outra hipótese. Chorei com o coração rasgado e a alma num sufoco que não consigo descrever. Senti-me a pior pessoa do mundo, um traidor, um péssimo filho. Tive pesadelos com aquilo durante meses e meses. Acordava a chorar e a chamar por ela.
No inicio foi muito dificil. O país estava em confinamento e ninguem podia sair de casa. As visitas a lares e hospitais estavam proibidas.
Ia tendo noticias dela pelo telefone e algumas video-chamadas que faziam do lar.
A mãe encontrou no lar pessoas maravilhosas. Tratadoras e auxiliares de uma humanidade imensa.
A mãe, com o seu jeito dócil e o seu coração imenso, cativou toda a gente e era muito amada por todos... a Arletinha, como era carinhosamente chamada.
Na altura ela ainda me reconhecia nas vídeo chamadas e falava muito em mim, no pai e no zé e quase sobre todos.
Aos poucos, o meu coração amainou e aceitei que ela estava bem, com pessoas que a amavam e a tratavam bem.
Entretanto, o país começou a ver as restrições da pandemia aliviadas e as visitas começaram a ser possíveis.
Passei a poder estar com ela todas as semanas durante meia hora, depois um pouco mais.
O estado de demência dela era cada vez mais acentuado e profundo.
Fazia meia hora de viagem para estar com ela e ela apenas aguentava uns 10 minutos comigo:
Ou não falava, ou não reagia, ou adormecia.... mas aqueles 10, 11 ou poucos minutos, eram os melhores momentos da minha vida.
Outras vezes estava mais desperta.
Quando ia ao Lar fazia sempre uma video chamada para o grupo dos tios para eles poderem "estar" com ela e falar com ela.
De vez em quando ela reconhecia algum deles, chamava-os pelos nomes: " meu Adriano, o meu Agostinho, o eu Manel..."
Outras vezes, cheguei a estar com ela durante uma hora, com a cabeça dela no meu peito, apenas com ela a dormir, sem reagir... apenas a dormir...
O cheiro dela, o rosto, o cabelo, o toque... cada milímetro e cada segundo eram os meus tesouros.
Em 2021 a demência ficou total, deixou de me reconhecer e de conhecer quem estivesse com ela.
Visitava-a todas as semanas, pelo menos, e estava com ela ali uma hora... apenas a olhar para ela ou a tentar um diálogo que nunca tinha retorno... mostrava-lhe fotos, videos, musicas, cantava, acariciava-a ou apenas ficava a sentir as mãos dela nas minhas mãos...mas valia a pena cada segundo... todo o meu ser estava feliz por estar com ela, mesmo que ela não me reconhecesse.
Em 2022 ela ficou mais fraca. Teve uma infeção respiratória e recuperou, mas estava mais frágil, mais magra, mais curvada.
O olhar vazio e opaco...
Mas a beleza dela.... aquela beleza imensa estava lá... sempre lá.
Sabes... a minha mãe sempre foi de uma beleza estonteante, por fora e por dentro.
Em Junho voltou a piorar da infeção respiratória e desta vez já não recuperou.
Um dia.... no dia15 de Junho, estou a trabalhar e recebo um telefonema do Lar, depois do hospital a dizer-me para ir lá porque ela estava na reta final......
Não sei como descrever o que senti. O meu mundo parou.
Fui ter com ela... entrei no hospital, nos cuidados intensivos e o médico disse-me para me despedir dela porque o corpo dela já não reagia à medicação e a qualquer momento ia tudo acabar.
Impossível, pensei eu... ela estava ali, serena, a dormir, a receber oxigénio, os sinais vitais estavam estáveis.... não queria acreditar. Era um pesadelo e eu ia acordar e tudo ia acabar bem....
Estive com ela nas últimas horas.
Vim a casa descansar um pouco e tomar um banho.... Às 3 da manhã, o coração da mãe parou, no dia 16 de junho.
O meu mundo parou às 3 da manhã do dia 16 de junho de 2022.
Desde então o vazio cresce. Choro.... sim choro muito. Choro todos os dias, do nada. Acordo a chorar. Choro no trabalho, ao volante, enquanto estou só, enquanto vejo tv, enquanto leio... enquanto simplesmente respiro.
Porque a memória dela está sempre presente em todo o lado e em todos os momentos... e a dor da ausência só cresce e não se apazigua.
Vivi isto tudo durante a pandemia, os problemas e sobressaltos do meu trabalho (a minha equipa desceu de divisão em 2021, lutamos para subir em 2022).
Tive COVID em 2021 e passei muito mal, muito mesmo. Tive medo...Tive outros problemas de saude devido ao stress e exaustão.... passei por momentos em que não sabia onde me agarrar, cansado... mas bastava ela... bastavam aqueles minutos ao lado dela para tudo fazer sentido.
Ela, mesmo sem me reconhecer, sem me falar... foi sempre o meu porto seguro e a minha força maior.
Durante todo este período vivi uma revolta interior contra o mundo e contra uma Igreja a quem ela dedicou uma vida inteira enquanto catequista, ministra da comunhão e da celebração da palavra.
Sabes, a mãe sempre teve no fazer o bem aos outros como um dos objectivos de vida mais importantes.
Vivi essa revolta de a terem abandonado.
O padre da freguesia nunca me perguntou pela mãe, nunca visitou o pai. Nunca quis saber de nada.
Escrevi dois emails ao então bispo de Coimbra a relatar a minha revolta.
A mãe dedicou a vida dela à Igreja... e a "igreja" abandonou-a quando ela mais precisava de amor.
Da segunda vez o bispo respondeu-me a pedir desculpa.
No dia seguinte o padre da paróquia ligou-me com as desculpas mais esfarrapadas, a prometer que a ia visitar e visitar o pai... mentiu. Nunca o fez ou teve intenção de o fazer... nunca.
A mãe faleceu... o dito padre fez o funeral e nem as condolências deu a mim, ao pai ou qualquer membro da família.
Foi assim este meu tempo que o mundo que eu conhecia há quase 50 anos acabou.
Desculpa ser tão longo.
Não espero nada de ninguém. Nem ajuda, nem amor, nem conforto.
Até porque nada faz sentido.... o que eu queria não tenho... a minha mãe.... o meu mundo.
Tentarei deixar um legado que a honre e a deixe orgulhosa.
Tentarei ser um pouquinho do verbo Amar que ela sempre foi.
Tentarei fazer o Meu mundo... à imagem do seu sorriso.